quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Diário do Contador por Suelem Jobim



 Realizo minhas contações numa turma de 5º ano com 20 alunos, divididos em grupos de 5. Essa divisão é necessária para que a leitura dialógica tenha efeito. Como vocês devem ter lido em outros posts a participação dos alunos é essencial nesse tipo de contação, e com pequenos grupos fica mais fácil conduzir os diálogos.
Como sou “marinheira de primeira viagem” decidi usar um único livro para todos os grupos. É que na leitura dialógica não basta apenas um conhecimento prévio da história que se irá contar, temos que pensar onde é conveniente interromper a narrativa para fazer as perguntas chaves, as perguntas abertas, e se preparar para a ampliação das respostas. Por vezes os livros suscitam reflexões complexas: vida, morte, religiosidade. Temos que ter muita atenção a fala dos participantes e ser sinceros na hora de respondê-las. Ou não! Em alguns momentos tive de dizer “não sei”, “vamos pesquisar”, ou então “pelo visto não temos uma única resposta para essa questão”; não há problema em admitir essas coisas. Falarei mais sobre isso a seguir...
Lemos no semestre passado “A mulher que matou os peixes” da Clarice Lispector. Dei as seguintes informações para ambos os grupos: a autora nascera na Ucrânia, na Europa Oriental (levei um mapa e mostrei onde fica o país), mas que ela se considerava brasileira, pois veio para cá com apenas dois meses de idade; nasceu em 1920 e morreu em 1977; e que o livro fora escrito há 37 anos.
Clarice conta que matou dois peixes vermelhos porque se esqueceu de alimentá-los. A partir daí começa a contar a história de vários bichos que ela teve inclusive os “bichos naturais”, ou seja, aqueles que ela não “convidou” nem “comprou”, mas que habitam sua casa, como lagartixas e baratas. Clarice espera que ao final, após falar de sua ligação com os animais, os leitores possam a perdoar pela morte dos dois peixes.
Um tema importante levantado a partir da leitura foi meio ambiente. A turma estudou educação ambiental, e isso ajudou-nos a discutir sobre o trecho onde Clarice conta que comprou animais silvestres. O livro foi escrito muito antes da promulgação da lei de crimes ambientais. As crianças concluíram que se fosse escrito hoje, pelo menos esse ponto da história seria diferente. 
Outra questão polêmica é quando Clarice fala que já teve vários pintos, mas que eles morriam facilmente e que apenas aqueles que possuíam a “alma mais forte” sobreviviam. Perguntei aos grupos se eles acreditavam que os animais possuem alma. Todos concordaram que sim. Em seguida perguntei o que é alma, então cada um começou a falar das suas crenças em Deus e na criação do mundo. As opiniões divergiam por causa das religiões diferentes (espíritas, católicos, evangélicos). Depois de muita discussão, uma das alunas me perguntou: E a senhora professora? TÃNÃNÃNÃ! Todos olharam para mim, aquele clima de que “agora teremos a grande resposta, a resposta definitiva”. Respirei fundo e disse: Eu não sei. Espanto! “Como assim professora? Quem criou o mundo? Quem criou Deus? De onde viemos? Para onde vamos? Alguém tem que saber!”. Outros argumentavam “mas na minha igreja dizem que é de tal jeito, a senhora não acredita?”.
Um aluno vira-se e pergunta: E a sua religião qual é professora? TÃNÃNÃNÃ! Pensei: Ai é agora! Digo a verdade? Será que vou chocá-los? Lá vai: Não tenho uma... Mais uma onda de espanto! “Como a senhora não tem professora?!” O que fazer agora? Veio-me uma palavra: tolerância. Disse a eles que com tantas opiniões diferentes importa mais sermos tolerantes com a crença do outro do que julgarmos quem está certo ou errado, e que esses mistérios da vida os acompanhariam sempre. Olhinhos confusos, porém satisfeitos com minha sinceridade...
Numa das últimas contações, antes das férias, resolvi perguntar as crianças o que eles viam de diferente nessa forma de contar histórias. Eles disseram que as outras pessoas parecem contar as histórias para si mesmas, que os contadores costumam não olhar para os ouvintes, que os infantilizam contando histórias “bobinhas” e que “A mulher que matou os peixes” é um livro muito bom, pois a Clarice conversa com o leitor (“Ela não fala só pra ela, fala com a gente, faz perguntas...”).
Na próxima semana retomarei as contações. Um dos grupos pediu outro livro da Clarice, escolhi “A vida íntima de Laura”, os demais grupos pediram livros de aventura, levarei “Viagem ao centro da Terra” do Júlio Verner e “Moby Dick, a fera do mar” do Herman Melville.
Compartilharei com vocês o andamento das leituras. Até mais!