quarta-feira, 13 de junho de 2018

Página de um diário inacabado


No dia 1º de agosto do ano passado eu vivia uma das maiores perdas da minha vida. Praticamente no exato momento em que eu me despedia da minha mãe, em um hospital, eu recebia por mensagem via celular um convite da querida amiga Eileen Flores, que nada sabia sobre o que eu estava passando. Ela estava me convidando para substituí-la temporariamente, por três meses, na coordenação do projeto de extensão “Livros Abertos: aqui todos contam!”, do qual eu já era admiradora.

Naquele turbilhão de emoções, como é do meu feitio, encarei o convite como um presente, da Eileen e do destino. Eu não queria achar que era só uma coincidência, mas que seria uma oportunidade para me fortalecer. Dias depois conversamos pessoalmente e eu decidi abraçar a oportunidade, ciente de que não seriam dias fáceis os que eu viveria naquele momento – não pelo projeto, mas pelo meu luto.

Assumi a coordenação, substituindo quem é insubstituível, ocupando uma função sabendo que viriam resistências, comparações, mas também viria acolhimento e aprendizagem.  E foi tudo isso mesmo. Fizemos inúmeras reuniões previstas no cronograma do projeto, pensamos em pautas, recebemos convidados. Eu adiei alguns dos meus planejamentos para o grupo, não consegui visitar escolas ou realizar mediações. Planejamos e realizamos eventos diversos, incluindo a programação da Semana de Extensão e dialogamos, tanto quanto possível, sobre o que estávamos fazendo bem e o que poderíamos melhorar. Conheci inúmeras histórias infanto-juvenis, mas muitas outras das pessoas que estavam ali, toda quinta-feira ao meio-dia.

Chegou o dia, então, de me despedir. Em dezembro preparei uma mediação para a última reunião em 
que eu participaria e compartilho a poesia que escolhi, a seguir:

Sentirei Saudades

Do pátio escuro,
Do cinzento do muro
Eu sentirei saudades...

Da briga das tias,
Da alegria dos colegas,
Sentirei saudades...

Das salas arejadas,
Do quadro verde como a grama,
Sentirei saudades...

Das novas lições
E das provas bimestrais,
Sentirei saudades...
Dos lanches gostosos,
Das serventes amorosas,
Sentirei saudades...

Do Ginaldo engraçado,
Da diretora alegre,
Do apoio pedagógico,
Sentirei saudades...

Da secretária amiga,
Das horas cívicas bonitas,
Sentirei saudades...

Se eu me esqueci de alguém,
Desculpe-me...
Mas de tudo sentirei saudades.

Após a leitura, perguntei: por quem essa poesia parece ter sido escrita?

Vários extensionistas, para minha surpresa, tiveram a impressão de que ela teria sido escrita por uma pessoa adulta ou idosa, lembrando-se de uma escola da qual havia se despedido em algum momento de sua vida.

Por que me surpreendi? Porque essa poesia foi escrita por uma criança, aos dez anos de idade, quando se despedia da escola em que havia estudado por cinco anos (da antiga pré-escola à 4ª série do ensino fundamental).

Conversamos um pouco e revelei ao grupo que essa “criança-autora” ou “criança-poetisa”, havia sido... eu!

E então, como toda mediação literária, veio o mais interessante. Eu compartilhei o quanto esta poesia foi importante para mim, acredito que como forma de lidar com as dificuldades de mudança de escola que eu vivia no momento, mas também como elaboração escrita. Lembro-me o quanto ela foi valorizada na escola, na minha família. Essa primeira produção poética me fez acreditar que eu podia me atrever com as palavras escritas e ela me levou adiante. Enfatizei o que o trabalho dos mediadores do projeto podem estar possibilitando para inúmeras crianças e adolescentes, mesmo sem que percebam este alcance.

Conversamos um pouco mais também sobre os estilos diversos de escrita. Como é difícil conciliar esse gosto ou facilidade por escrever poeticamente, ou em prosa, ou em crônica, quando estamos na academia e somos chamados a responder a partir da literatura científica, técnica. Um eterno dilema, uma luta diária que travo comigo mesma.

Perguntaram se eu ainda escrevo poesias. Fiquei envergonhada! Sim, ainda escrevo, muito timidamente, em relação à quantidade e divulgação. Acredito que transferi minha experiência poética para o interesse em relação à brincadeira infantil, atividade que me apaixona e que não me deixou amarras quanto à timidez. Sou capaz de teorizar, estudar, observar a brincadeira e ainda brincar! 

Nesta reunião eu agradeci a oportunidade de ter estado com o grupo naquele semestre tão difícil. Tive certeza de que a coordenação não foi um trabalho a mais diante do luto, mas foi um dos elementos que me tirou da possibilidade de me ver vencida pela dor que eu sentia.

Em reunião posterior com a Eileen eu compartilhei com ela um pouco de tudo isso e pedi para ficar, de alguma forma. Assim, estou aqui, neste momento, cumprindo a promessa de escrever este texto para o Blog e acompanhando, ainda que de longe, graças à tecnologia, discussões, organizações, movimentos de resistência e beleza.

Semestre que vem me reaproximarei.

Obrigada, Eileen! Obrigada, Livros Abertos!

Vocês me ajudaram a lidar com uma saudade sem fim.

P.S. 1- A Poesia foi escrita quando eu ainda me chamava Gabriela Sousa de Melo
P.S. 2 – Eu ainda tenho o original, escrita com minha letra cursiva e um desenho de coração ao fundo.

Escrito por Gabriela Sousa de Melo Mieto





sexta-feira, 1 de junho de 2018

Sobre retalhos, histórias e afeto

Minha mãe não me deu meu nome, Alice, assim, sem mais nem menos. Criou-me só, e em nosso País, as Maravilhas eram as Histórias que eu encontrava em cada canto de nosso pequeno apartamento. Mamei ouvindo cantigas misteriosas sobre um lugar chamado Roça e um Papão que rondava, mas minha mãe estava ali, bem do meu ladinho, ainda bem. Engatinhei rodeando pilhas de livros e revistas e um dia descobri que tinha força para derrubar aquelas torres cambaleantes, que se esparramavam em um fascinante leque arco-íris.

Ilustração de John Tenniel

Todas as noites, um ritual: a colcha de retalhos, que eu queria comigo, mesmo quando fazia calor. No começo era a voz. Ritmo que acalenta, música das músicas, histórias sem palavras. Ao longo dos anos, a música foi ganhando letra: bruxas, fadas, dragões, navios em viagens perigosas. Espelhos mágicos, pássaros falantes, palácios de açúcar. Macacos espertos, onças egoístas, amores impossíveis. O caminho que dá medo, a ajuda de quem menos esperamos, a coragem de continuar.

Um dia, fiz minha primeira aventura solo pela floresta densa que circundava nosso mundo. Tinha medo, claro, das bruxas e dos ogros que poderiam estar à espreita, mas também tinha a pedra mágica que minha mãe havia me dado, para o caso de eu precisar. Por isso não chorei quando, com uma mão segura pela cuidadora da creche e a outra envolvendo firmemente meu talismã, vi minha mãe se afastando e olhando para trás de vez em quando, com um sorriso encorajador que hoje não sei se era só para mim ou também para ela.

O tempo passou, da creche passei a ir à escola. Os dias passavam depressa no redemoinho de cadernos, areia, lápis de cor, as letras da cartilha, bola de meia e amarelinha. Fiz muitos amigos, mas não ouvi muitas histórias. O recreio era curto, nossas fantasias não cabiam nele, quando nosso mundo estava ficando bom, tocava o sinal e voltávamos para um deserto. Palavras sedentas nos imploravam pela água do sentido, mas só nos era permitido repetir seu nome, e elas secavam até morrer.

Minha mãe chegava para me buscar com o olhar um pouco perdido, me abraçava cansada e íamos para casa fazer a janta e preparar tudo para o dia seguinte. Eu ainda era pequena, mas ajudava em tudo que minha idade permitisse para terminarmos logo as tarefas e podermos, juntas, continuar lendo “nosso livro”. Líamos juntas um conto indígena, um mito grego ou uma lenda africana. Poemas, crônicas, um capítulo de algum romance “ainda muito difícil para você” (mas eu não me importava, achava até bom sentir que não entendia tudo, que leituras e releituras me revelariam novos segredos).

Mas nossas mil e uma noites não estavam salvando minha mãe dos monstros do dia-a-dia. Cada noite, via seu olhar mais velado, mais cansado. De um capítulo, passamos para algumas páginas, de algumas páginas a algumas linhas. Até que uma noite, minha mãe adormeceu no sofá antes de nossa sessão de histórias. Cobri-a com minha velha colcha e abracei-a com força, cantando baixinho uma de nossas cantigas. Contei-lhe uma história que começava num lugar encantado, sobre uma rainha que criava uma filha só, entrelaçando histórias em seus cabelos, dando-lhe forças para enfrentar o mundo. Um leve sorriso se desenhou em seus lábios. Murmurou algo que não entendi bem, sem acordar, mas parecendo mais tranquila. Ajeitei sua colcha, dei-lhe um beijo na testa e fui dormir. 

Para todas as mães e filhas contadoras de histórias.


Escrito por Eileen Pfeiffer