sexta-feira, 1 de junho de 2018

Sobre retalhos, histórias e afeto

Minha mãe não me deu meu nome, Alice, assim, sem mais nem menos. Criou-me só, e em nosso País, as Maravilhas eram as Histórias que eu encontrava em cada canto de nosso pequeno apartamento. Mamei ouvindo cantigas misteriosas sobre um lugar chamado Roça e um Papão que rondava, mas minha mãe estava ali, bem do meu ladinho, ainda bem. Engatinhei rodeando pilhas de livros e revistas e um dia descobri que tinha força para derrubar aquelas torres cambaleantes, que se esparramavam em um fascinante leque arco-íris.

Ilustração de John Tenniel

Todas as noites, um ritual: a colcha de retalhos, que eu queria comigo, mesmo quando fazia calor. No começo era a voz. Ritmo que acalenta, música das músicas, histórias sem palavras. Ao longo dos anos, a música foi ganhando letra: bruxas, fadas, dragões, navios em viagens perigosas. Espelhos mágicos, pássaros falantes, palácios de açúcar. Macacos espertos, onças egoístas, amores impossíveis. O caminho que dá medo, a ajuda de quem menos esperamos, a coragem de continuar.

Um dia, fiz minha primeira aventura solo pela floresta densa que circundava nosso mundo. Tinha medo, claro, das bruxas e dos ogros que poderiam estar à espreita, mas também tinha a pedra mágica que minha mãe havia me dado, para o caso de eu precisar. Por isso não chorei quando, com uma mão segura pela cuidadora da creche e a outra envolvendo firmemente meu talismã, vi minha mãe se afastando e olhando para trás de vez em quando, com um sorriso encorajador que hoje não sei se era só para mim ou também para ela.

O tempo passou, da creche passei a ir à escola. Os dias passavam depressa no redemoinho de cadernos, areia, lápis de cor, as letras da cartilha, bola de meia e amarelinha. Fiz muitos amigos, mas não ouvi muitas histórias. O recreio era curto, nossas fantasias não cabiam nele, quando nosso mundo estava ficando bom, tocava o sinal e voltávamos para um deserto. Palavras sedentas nos imploravam pela água do sentido, mas só nos era permitido repetir seu nome, e elas secavam até morrer.

Minha mãe chegava para me buscar com o olhar um pouco perdido, me abraçava cansada e íamos para casa fazer a janta e preparar tudo para o dia seguinte. Eu ainda era pequena, mas ajudava em tudo que minha idade permitisse para terminarmos logo as tarefas e podermos, juntas, continuar lendo “nosso livro”. Líamos juntas um conto indígena, um mito grego ou uma lenda africana. Poemas, crônicas, um capítulo de algum romance “ainda muito difícil para você” (mas eu não me importava, achava até bom sentir que não entendia tudo, que leituras e releituras me revelariam novos segredos).

Mas nossas mil e uma noites não estavam salvando minha mãe dos monstros do dia-a-dia. Cada noite, via seu olhar mais velado, mais cansado. De um capítulo, passamos para algumas páginas, de algumas páginas a algumas linhas. Até que uma noite, minha mãe adormeceu no sofá antes de nossa sessão de histórias. Cobri-a com minha velha colcha e abracei-a com força, cantando baixinho uma de nossas cantigas. Contei-lhe uma história que começava num lugar encantado, sobre uma rainha que criava uma filha só, entrelaçando histórias em seus cabelos, dando-lhe forças para enfrentar o mundo. Um leve sorriso se desenhou em seus lábios. Murmurou algo que não entendi bem, sem acordar, mas parecendo mais tranquila. Ajeitei sua colcha, dei-lhe um beijo na testa e fui dormir. 

Para todas as mães e filhas contadoras de histórias.


Escrito por Eileen Pfeiffer

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