domingo, 4 de junho de 2017

Diário do Contador - A viagem de Francesca Sanna

Esta semana, eu levei um livro que estava desde janeiro na minha estante esperando ser contado. Eu lembro da primeira vez que o li, entre as estantes de uma grande livraria. Lágrimas discretas escorreram pelo meu rosto, e quando fui ao caixa, meu nariz estava vermelho e inchado.

O caixa perguntou: “está tudo bem, moça?”. E com um suspiro eu respondi, sem chorar, que eu achara um dos livros mais bonitos do mundo.

Eu não sei que fim deu, e se o caixa foi atrás de minha indicação, mas sei que esse é um livro que não merece ficar escondido em estantes. Sabia também que eu precisava de um tempo sozinha com ele, conhecendo, lendo e relendo e me preparando para uma contação.  

Estou falando de A viagem, ilustrado e escrito por Francesca Sanna. Sinceramente, só de ver a capa meu pulso se acelera! Premiado pela Sociedade dos Ilustradores de Nova York e acalentador de corações, o livro chegou ao Brasil em uma belíssima edição. Trata-se de um livro sensível, atual e intenso. Francesca, inspirada na história de algumas garotas que conheceu, narrou a história de uma família que foge de seu país por causa de uma guerra e embarca em uma grande aventura, a procura de um novo lar.

A imigração, mais do que questão de vestibular, é um tema que toca questões profundas, como convivência entre pessoas, respeito à diversidade, globalização. Podemos nos enganar pensando que é um tema distante da realidade brasileira, mas não podemos perder de vista as ações do governo atual com a chamada Lei da Migração, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional. Isso sem falar do histórico do Brasil (um país de imigrantes) e dos próprios movimentos populacionais e migratórios do nosso país.

Após esse adendo, voltemos ao livro. Suas ilustrações parecem ser feitas não apenas para o imaginário infantil, mas parece que nasceu das narrativas e olhar de uma criança. A guerra é retratada como uma grande sombra, os agentes da fronteira são enormes e assustadores – uma das crianças até os identificou como aliados das sombras! Além disso, há forças e pessoas que auxiliam nessa aventura, também são retratados como criaturas enormes e elementais, como se fossem misteriosos e poderosos demais para serrem compreendidos pelo nossa pequena criança protagonista. 

Mas nem tudo, é sombrio e incerto nesse livro. Ao longo das páginas, vemos laços de amor e esperança que se aperta e se fortalece entre mãe e filhos.


Muito do que fica implícito no livro é compreendido pelas crianças, como a atmosfera de perseguição e medo, o preconceito aos imigrantes, a dureza daqueles agentes de guerra que não se compadecem com o destino de civis e crianças.

As crianças para quem contei tem 7 e 8 anos, e elas já intuem a intricada e complexa rede de poder e de segredos por trás de uma guerra. “Tia, numa guerra, tem um monte de bombas e armas, muita gente morre e muita gente é machucada. A cidade é destruída... e depois da guerra, [eles] falam que não foi nada, que foi só um terremoto e mandam que tudo volte ao normal”. Algum dos meninos falou sobre o perigo de fugir de uma guerra, e logo estávamos falando sobre a segunda guerra mundial. E, sim, eles falaram sobre Hiroshima e o absurdo de atacar uma cidade inocente. “Eu não entendo tia, porque eles construíram uma bomba que pode destruir o mundo?!”. Fui sincera com as crianças “eu também não entendo”.

Afinal, se estourasse uma guerra aqui no Brasil, o que vocês fariam? Para onde iriam?

“Eu iria para Itália [...] porque lá tem os carros mais rápidos”.
“Eu iria para a Itália também porque lá poderia andar de snowboard”.
“Eu não tia, eu iria para os Estados Unidos [...] porque tenho um tio que mora lá, e Estados Unidos tem muita bomba para se proteger”. “Iria para Hollywood virar atriz!”.
“Eu iria para a China que é bem longe daqui”.

Nesta contação com as crianças, vivi grandes paradoxos. Por mais que para as crianças fosse consenso que a família do livro pudesse vir para o Brasil, que é um lugar seguro e sem guerras. Aos poucos tornou-se impossível ignorar as pequenas guerras que temos no Brasil, e a falta de segurança que temos aqui.
“Não posso sair à noite, porque é perigoso, tia”
“É mesmo, muito perigoso lá”, outra criança concordou.
“Tem gente má que fazem coisas ruins com crianças”.
“Já vi uma mulher na rua sendo perseguida”
“Já ouvi som de tiro, tia”.


No momento que eu peguei esse livro, já sabia que as crianças viajariam com ele e veriam cenas da própria história. Não perca essa oportunidade de conversar mais sobre os refugiados do mundo e também os momentos que sua criança deseja refúgio.

Meus votos para que sempre possamos encontrar um lugar seguro para sermos nós mesmos e fazermos nossa própria história, ainda que para isso tenhamos que nos aventurar por novos ares.


Ficou curioso? Quer saber mais sobre esta obra? Confira nossas dicas de mediação em nossa revista digital.
https://www.revistalivrosabertos.org/single-post/2017/06/01/A-viagem-Francesca-Sanna
Confira partes da história em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=81&v=ZRHlyIcFH3k

Escrito por: Júlia Gisler
Ficha técnica
Título: A viagem
Autora e ilustradora: Francesca Sanna
Tradutor: Fabrício Valério
Editora: Vergara & Riba Editoras

Ano de edição: 2016

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