terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A cor da ternura

Quando fui à procura deste livro, meu objetivo não passava de um projeto de inclusão de minorias através da literatura. Sim, nem chequei a sinopse para lê-lo, vi apenas que a personagem era negra e o catei da estante.

Foram duas horas deliciosas de leitura sobre a auto-biografia de Geni Guimarães, os melhores momentos de sua infância até vencer na vida chegando onde chegou. Acompanhar seu desenvolvimento pessoal com diversas referências ao racismo, gênero, pobreza entre outros problemas sociais de forma tão sincera no desenrolar da infância - fase em que o ser humano se constrói enquanto ser social - foi uma experiencia de compatibilidade que apenas me incentivou ainda mais a ir em frente com o projeto com a inclusão deste livro, garantido para as próximas leituras. Não só os problemas são abordados, mas também gostos pessoais com direito à explicação ou ligação do porquê, problemas que as crianças costumam passar, como perder o peito da mãe, ou a vaga de centro da família para o novo irmão mais novo. Sua paixão por bichinhos de estimação ou animaizinhos devido à solidão.

Impossível não abordar a cena em que Geni, aproximadamente aos 7 anos, sendo ainda alfabetizada, passa o dia inteiro pensando se vai ou não vai beijar a professora, meus olhos marejam na mesma hora. Eu sinto perfeitamente a aflição que ela quis transmitir nas descrições de seu psicológico, o quanto a dúvida ainda a angustiava, uma dúvida que, apesar de ser um problema completamente bobo para adultos, a narrativa consegue transmitir ao nos transportar para o universo infantil, no qual os problemas, apesar de difusos, permanecem sendo problemas. Depois de toda aquela pressão, esquece-se de fazer o dever, e a moça tão desejada em seus pensamentos, aquela que Geni ponderava se seria ou não boa ideia beijar, surge reprovando completamente sua atitude de "passar o dia sonhando, sem que tenha feito o que se pediu". Desacreditada pelo constrangimento que a professora a fez passar em frente a todos, inclusive inferiorizando-a por meio de comparações com o menino valentão que a agride todos os dias, a única ação de Geni a deixa se sentindo com cara de ainda mais boba. Sendo reprovada novamente pela professora, Geni libera todas aquelas mágoas através de um choro profundo. Como tentativa de pedido de desculpas pelas suas ações, Geni finalmente toma a decisão de beijar a professora. Mas se sente ainda mais diminuída do que estava quando vê que  a professora põe-se a limpar o beijo.

Geni, uma menina negra de família pobre, amante dos animais, de poesia e das histórias contadas por uma negra anciã sobre escravatura, carrega em si a vontade de modificar a história imposta de seus ancestrais pelo olhar do homem branco. Quem nunca ouviu a história do preto coitadinho que foi libertado por uma moça branca em poucos minutos, que apenas ao riscar um papel livrou anos de sofrimento de um povo? Mesmo que indiretamente, Geni desacredita que tudo realmente tenha acabado ou que seus ancestrais não passaram de seres dignos de pena. Ela defende o heroísmo, a resistência, a proteção de uma cultura perseguida que ainda está presente. Ao mesmo tempo, em momentos de fraqueza, quer negar o fardo de ter a pele escura ou os cabelos crespos, das cobranças sociais indiretas, de ter de se contentar com uma submissão racial ainda existente.

Seus conflitos externos e consigo, um misto de ações ocorridas e idealizadas, tudo que viveu, experiências que qualquer ser humano passa, ainda que em proporções – sejam ideológicas ou quantitativas – desiguais fez nascer não só uma professora disposta a modificar mesmo que em pequenos passos a história que ficou; esclarecer para uma pequena aluna branca racista que sua cor escura não a impede de encantar as pessoas com seus métodos de ensino, provar aos professores da nova escola que uma menina negra também pode ser professora – com direito a demonstração do diploma de magistério e tudo. Também sente o enorme orgulho de dizer a si mesma e às pessoas ao seu redor “sim, eu sou negra; tanto aos olhos externos quanto nos olhos de dentro'”.
Além de superação e exposição do que é real em relação à raça, desigualdade social e gênero, a história vai além ao transparecer um unânime modelo histórico sobre escravatura positivista nas escolas com ícones calculadamente escolhidos. Princesa Isabel, uma princesa branca de origem portuguesa que liberou os escravos porque era uma santa; esse é o único resumo de toda uma história de abolição que temos? Será que não existem mesmo símbolos de resistência negra? Negros puderam viver felizes para sempre após a “libertação”? Princesa Isabel aboliu realmente alguém? Se sim, foi por que era uma santa? São reflexões que o livro me deixou seguir.
Acredito que além de reflexiva, a obra se torna autêntica por ser uma negra falando de racismo, uma pessoa que convive com isso e sabe perfeitamente o que abordar, pois está expressando e transparecendo aquelo que ela teve e tem de enfrentar. Além disso, cada fase descrita é uma viagem ao que todos passamos quando jovens em crescimento. Independente da idade, excelente leitura para análise do que passamos e como somos, aquilo que construímos e o porquê.

Obra: A Cor da Ternura
Autora: Geni Guimarães
Ilustradora: Saritah Barboza
Editora: FDT
Ano: 1998 (12ª Edição)

Autoria da Resenha: Amanda Barros