sábado, 16 de junho de 2012

Coluna do Colaborador: Domingos Sávio Coelho *

A Gramática ou a Vida

Professora,
não dá pra levar a sério este livro de português da minha filha ! Simplesmente não tem relevância alguma, neste momento da vida dela, saber que alguns estudiosos da língua criaram uma teoria que diz que nossa fala é recheada de frases declarativas, exclamativas e interrogativas ! 
Pedi a ela que fosse até a janela e me dissesse como estava o céu. Ela foi, olhou pro céu, voltou pro quarto e declarou que o céu tinha uma nuvem grande e escura e que apareceu um pouco de azul entre algumas nuvens. Disse que ela acabara de fazer uma declaração. “E daí ?” ela me perguntou. Ela tem toda razão. De fato, de nada serve este tipo de conhecimento teórico de gramática para quem precisa ler um gibi, um poema. À medida que ela ler mais e mais gibis irá ganhar cancha de leitura de gibis. 
Não gostaria de sobrecarregar minha filha com informação inútil (inútil para este momento da vida, obviamente ! Creio que este tipo de informação é muito relevante para o estudante.... universitário, por exemplo). A questão central de fato é que minha filha precisa aprender a amar os livros, a contação de estórias, os poemas do Vinícius de Moraes, admirar as frases de efeito do Guimarães Rosa (“o nada é um balão sem a pele”), inventar palavras e escrever as palavras que ela inventar. Em relação a este ponto crítico, as informações contidas no livro de português são de uma irrelevância que não tem tamanho ! Conversei com a Diretora e a Coordenadora que disseram entender minha posição e que vão pensar sobre o assunto. Sei que várias escolas aqui em Brasília adotam este livro. Penso com meus botões sobre a falta de ousadia das escolas: o mesmo livro, o mesmo caminho, a mesma rota marítima diante de um mar de possibilidades. Se um barco encontrar um iceberg pela frente... Meu coração gelou quando vi que num determinado trecho do livro tem uma página de revista em quadrinhos e, a seguir, vem uma batalhão de perguntas para “compreender o texto”. Na verdade, são perguntas pensadas para “matar a vontade de gostar de ler gibis” em qualquer criança. É um crime contra a revista em quadrinhos. Pra mim que fui criado lendo gibis é impossível fazer este tipo de “autópsia” de uma estorinha em quadrinhos.

Querida, Professora,
Solicito uma tarefa alternativa. Por exemplo, o "dever de casa" poderia ser assim:
"Leia 3 revistinha bem lidas com sua filha. Lembre-se que a revistinha precisa ser bem lida, isto é, você tem que ler como se tivesse 7 anos e acabou de comprar a revista na banca. É uma revista de que você gosta e você sorri, admira os desenhos bem feitos, aponta a semelhança com a linguagem do cinema, etc. Depois disso você emenda uma estória que você viveu por causa de uma revistinha em quadrinhos." 
Você pode passar um dever assim ? 



* Domingos Sávio Coelho é professor da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto Circulo de Cultura Surda.


terça-feira, 12 de junho de 2012

As escolas matam a criatividade?

Complementando o texto de Lucas, vale a pena assistir:
http://www.youtube.com/watch?v=aQym7WkF5ks&feature=related

Diário do Contador: Lucas Moura Barros

Não subestime as crianças!

Todos nós já fomos ou ainda somos crianças. A passagem do "estado infantil" para o adolescente e assim por diante acontece tanto do ponto de vista físico, biológico, social, emocional, como também intelectual. Quero tratar aqui desse último aspecto, especialmente  levando em consideração a experiência adquirida com a contação da história “Eu não quero dormir agora" (Lauren Child) à crianças de aproximadamente 5 anos, ou seja, crianças do 2º período escolar. O livro conta a história de Lola, uma menina que não gosta de dormir cedo, e todas as vezes que é questionada por seu irmão sobre a hora de dormir a menina cria fantasias, brincando com a imaginação e adiando a hora de dormir.
O relativo desprendimento de regras rígidas 
pode favorecer a imaginação e a síntese de idéias surpreendentes...
A palavra intelecto significa: “conjunto do entendimento e da inteligência” (Minidicionário Ruth Rocha).
Não parece adequado esperar da criança o mesmo entendimento que os adolescentes, adultos ou idosos possuem, e isso em qualquer aspecto da vida cotidiana. Uma criança que estuda matemática,  ao comer uma pizza com seus familiares dividida em oito pedaços, certamente compreenderá melhor a partilha do que uma criança que ainda não aprendeu as regras de fração. Esta última terá dificuldade em perceber que a quantidade de pizza não aumenta quando aumenta o número de pedaços.  Se, em algumas ocasiões, crianças não "conseguem" racionalizar como os demais, por outro lado,os adultos acabam mais limitados no que compete a imaginação, tão sujeitos a normas e regras. A criança é menos experiente em relação ao adulto, mas é capaz de elaborar formas surpreendentes de entendimento.
Sendo assim, não é possível nem desejável exigir da criança o mesmo entendimento que você tem ao ler uma história. Talvez as experiências que o contador possui possam ajudá-las a saírem da concretude, a descobrir a polissemia, a multiplicidade de interpretações, a necessária consideração do contexto, etc. Existe, entretanto, o problema de subestimar o intelecto infantil. Tal problema vem da nossa incapacidade de se colocar em um nível que já passamos.
O mediador precisa resgatar a infância, real ou imaginada, e abrir a roda para a brincadeira com as palavras e imagens...
Na semana passada tive a oportunidade de fazer a minha primeira contação na Escola Classe 415 Norte. Esperava, com o livro já mencionado, um entendimento muito parcial das crianças e também desinteresse da maioria dos 21 alunos presentes. Não porque o livro fosse ruim ou difícil de se entender, mas porque subestimei o intelecto e o gosto pela leitura desses pequeninos. Ao começar as apresentações para dar início a contação, já notei a minha ignorância acerca do potencial delas. Todas ficaram quietas e se apresentaram gentilmente. Quando iniciei a contação, busquei fazê-lo de forma dialógica, sendo este um dos princípios mais importantes para os contadores do Projeto. No decorrer da história, sentado em uma pequena roda (os 21 alunos foram divididos em pequenos grupos), para minha surpresa as crianças estavam lá, de corpo e alma comigo. Ao nosso redor existiam infinitas possibilidades de dispersão, pois estávamos no pátio da escola expostos ao ruído e ao movimento. Porém as crianças mostraram absoluta concentração na atividade.
A cada diálogo eu aprendia a não subestimá-las. Elas não só conseguiam entender a narrativa, como também ofereciam interpretações para a história, e ainda faziam objeções ao autor.
Crianças não são miniadultos
Quando perguntei às crianças se elas gostavam de dormir cedo elas responderam: Não!!!! E outras: Sim!!!(em casos excepcionais). Todas interagiram com a história de maneira surpreendente, a cada virada de página, novas imagens e mais diálogo. Não era possível virar a página sem que fossem feitos comentários e que contassem casos da vida cotidiana, do tipo: "Meu irmão não dorme cedo, mas eu também não durmo". 
Concluí que não se pode pensar a criança como alguém de "outro mundo"! Ocorre que, assim como nós, elas também possuem uma forma de perceber e interpretar a vida.
Daqui a 5 anos serão outras interpretações e mais experiências, principalmente quanto melhor for o estímulo e a atenção dadas pela escola e a família.Acredito que cabe a nós contadores, observarmos o que acontece na roda sem esperar reações específicas, e estarmos abertos às suas formas de ver o mundo.  Desta maneira teremos acesso à riqueza de suas contribuições e muitas surpresas agradáveis.