sexta-feira, 12 de abril de 2019

Sobre literatura e recomeços


            Todos os dias eu acordo e penso na quantidade de coisas que eu preciso fazer para cumprir minhas metas de estudo. O dia passa e a gente se vê nessa correria da vida. Não nos sobra tempo para conversar com as pessoas sobre suas vidas, expectativas, sonhos e medos. E, assim, a vida vai passando, escorrendo pelos nossos dedos.
Eu tenho estado nessa rotina frenética de estudos contínuos no último ano. Fiz pesquisa fazendo Leitura Dialógica com crianças com autismo, mas apenas como observadora enquanto outras pessoas mediavam a leitura. Enfim... há oito meses não lia para ninguém. E é engraçado como a gente esquece de fazer coisas que nos deixam felizes e nos fazem ter experiências transformadoras.
Essa semana voltei a fazer mediações em uma turma da Educação de Jovens e Adultos pelo projeto Livros Abertos. As minhas expectativas eram baixas devido ao cansaço do dia e da rotina, em geral. Mas, ao compartilhar uma história, ao compartilhar experiências, é como seu uma luzinha se acendesse em um ambiente no qual antes predominava a escuridão e o tic-tac contínuo marcando os prazos de um cronograma a ser cumprido. Há vida brotando nas palavras, no compartilhar, na fala de cada participante da roda de leitura .





Nesse recomeço, fiz mediação com o livro “A vida não me assusta”, de Maya Angelou, com ilustrações de Jean-Michel Basquiat. Um livro sobre medos, sobre superações, sobre “erguer a cabeça e encarar as dificuldades da vida”, como disse um dos participantes. Em outra ocasião, já havia participado de uma mediação com o mesmo livro. Mas, ao compartilhá-lo com novas pessoas, relembrei o quanto cada roda de leitura é uma experiência completamente surpreendente.
Quando a gente entra em um contexto de Educação de Jovens e Adultos, nos deparamos com um público que, durante toda sua vida, foi subestimado por não saber ler e escrever. Pessoas que, muitas vezes, foram colocadas em posição exclusivamente de aprendiz, afinal, conhecimento científico é superior ao conhecimento adquirido com as experiências cotidianas, certo? Se você pensou “certo”, preciso te decepcionar e dizer que aqui, na vida real, fora dos ambientes acadêmicos, são apenas tipos diferentes de conhecimento, cada um com sua função.
Fazer mediações para esse público é entender que toda relação é uma troca: de experiências, de aprendizagem, de valores, de ideais. E para um segundinho para pensar aqui comigo: O quão disponível você está para se permitir participar dessas trocas? Quão flexível você está para se permitir essa movimentação entre os papeis de receber e de proporcionar trocas? O quanto você tem se fechado para o conhecimento que as pessoas ao seu redor carregam consigo? O quão presente você esteve, de verdade, para ouvir sobre os conhecimentos de pessoas com nível de escolaridade diferente do seu?
Nesse momento de recomeços, deixo uma proposta: Vamos nos permitir viver, compartilhar, ouvir e falar. Vamos nos permitir estar presente em cada relação, em cada possibilidade de troca, em cada sorriso e em cada olhar, em cada palavra dita ao outro e cada palavra ouvida. Apenas... vamos tentar.


Raphaella Caldas

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019


Diário de campo 

- Como um Romance e EJA








O primeiro direito do leitor, apresentado por Daniel Pennac, é o direito de não ler. Soa estranho, já que estamos tão acostumados com o discurso de que todos deveriam ler, pois a leitura é maravilhosa, nos leva aos locais mais incríveis, eleva nossa alma... porque é assim que nos tornaremos seres humanos incríveis... E, sem perceber, esse discurso nos afasta de todo o sentido da leitura, tornando-a uma obrigação, algo quase religioso, de modo que se você não faz parte desse seleto grupo, você não compreende a existência e nunca será iluminado pelas letras.


“Mas evitemos vincular a esse teorema o corolário segundo o qual todo indivíduo que não lê poderia ser considerado, em princípio, como um bruto potencial ou um absoluto cretino. Nesse caso, faremos a leitura passar por obrigação moral, o que é o começo de uma escalada que nos levará em seguida à “moralidade” dos livros, em função de critérios que não terão qualquer respeito por essa outra liberdade inalienável: a liberdade de criar. E então os brutos seremos nós, por mais “leitores” que sejamos. E sabe Deus que não faltam brutos dessa espécie, no mundo.”

Essa é uma reflexão trazida pelo livro “Como um Romance” que me tocou muito na experiência que tive com a leitura dialógica na EJA. Ao chegar com um livro, ele num primeiro momento causa um certo espanto. Não por ser algo que não faz parte do cotidiano, muito pelo contrário, por estar presente de forma tão opressora. Como aquele que não se pode ler até ser alguém muito intelectual e estudado. Aquele que foi negado por tantos caminhos diferentes que cada um viveu, dos quais a escola e a leitura não podiam fazer parte naquele momento.

“Deixado por conta da escola, ele se crê bem depressa um pária da leitura. Imagina que “ler” é em si mesmo um ato de elite e se priva de livros por toda a vida por não ter sabido falar deles quando lhe era perguntado.Existe, então, ainda outra coisa a se “compreender”. ”“Resta “compreender” que os livros não foram escritos para que meu filho, minha filha, os jovens os comentem, mas para que, se o coração lhes mandar, eles os leiam.” (Daniel Pennac- Como um Romance).

Chegar com o livro, sem exigir uma "tarefa" depois e principalmente sem prepotência nem julgamento. Simplesmente como um meio de estar juntos e compartilhar uma história. Não só uma na verdade, mas várias, a história de cada um/a, valorizada tal qual a história escrita naquele papel. Ali sim, aconteceu essa magia da leitura. Esse mistério que tem se desvirtuado, mas reencontra seu caminho por meio dessas experiências simples e poderosas de encontros verdadeiros. Porque não faz sentido só dizer que o livro é maravilhoso, pois isso não faz sentir. Vejo a importância de compartilhar leitura não só na infância, não só no contexto escolar, mas de forma ampla, assim podemos sentir a leitura, sem lugar ou protocolos, mas com verdade e encontro.


Escrito por Raquel Freire Coêlho