quinta-feira, 30 de abril de 2015

Contos de fadas - reflexões psicanalíticas

Todos estão cansados de saber que a Disney não é responsável pela criação e autoria dos contos de fada, mas fez releituras  de contos orais existentes. Também não é segredo que, apesar dos muitos acessos que temos a essas histórias, da forma como foram compilados  por Charles Perrault, Irmãos Grimm ou Madame D’aulnoy, os contos não são de autoria deles, mas sim foram transcritos de contações construídas conforme as necessidades das épocas. 
Fonte da imagem: http://www.ultimatecampresource.com/site/camp-activities/campfire-stories.html
Apesar de antigos, crianças e adultos ainda se identificam e se encantam com os contos e seus personagens e se emocionam a cada reconto. Quero discutir que, por trás disso, podem estar alguns símbolos muito poderosos que aparecem nessas narrativas. Claro que existem outras interpretações possíveis,  mas, por hoje, gostaria de pincelar alguns aspectos de interpretações de base psicanalítica, e gostaria de usar como exemplo o conto universalmente conhecido e amado: Chapeuzinho Vermelho.

A primeira compilação escrita que nos influenciou na contemporaneidade foi a de Charles Perrault, século XVII, com a obra "Contos de Mamãe Gansa". Contudo, a versão que nos é passada hoje com mais frequência é uma adaptação dos Irmãos Grimm que só se diferencia no ápice e final da história. Vamos por partes. 


http://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Little_Red_Riding_Hood
http://www.g4tv.com/thefeed/blog/post/702947/american-mcgee-teases-red-riding-hood-game


Chapeuzinho Vermelho, em uma das muitas versões, fala de uma criança que usa um capuz vermelho que vai levar doces para sua avó. Sua mãe lhe dá a instrução de não ir pela floresta porque é perigoso, nem conversar com estranhos. No meio da floresta, encontra um lobo, ela conta o que está fazendo, daí o lobo sugere que ela vá por outro caminho, então ela vai. Chegando na casa da avó, Chapeuzinho não a encontra, mas sim o lobo no lugar dela. Não se dá plenamente conta da troca, mas estranha o aspecto da avó. Convidando-a a se deitar, sua "vovó" exige que a menina tire a roupa e a jogue no fogo. 
Quando embaixo dos lençóis com o lobo, começa o diálogo clássico:


http://en.wikipedia.org/wiki/Little_Red_Riding_Hood
"Vovó, que olhos grandes você tem"; "É para te olhar melhor, minha netinha"; "Que mãos grandes você tem."; "É para te tocar melhor, minha netinha"; "Que boca grande você tem", "É para te comer". E a Chapeuzinho Vermelho é literalmente comida pelo lobo. Na versão dos Irmãos Grimm, surge a figura do caçador que corta a barriga do Lobo e salva a menina e sua avó. As interpretaçòes desse relato são várias. Por exemplo, uma compilação de Maria Tatar com versões dos contos orais famosos no século XIX) propõe interpretações como canibalismo, prostituição infantil e questões relacionadas à sexualidade. Mas esse é assunto para uma outra postagem.

Em períodos de guerra, pestes, escassez e calamidades sociais, não é segredo que o medo constante é uma rotina na vida das pessoas, e muitos relatos provenientes da tradição oral refletem esse horror  Todos abordam atrocidades com naturalidade. Muitos ocorrem em florestas, símbolos da solidão, do abandono e do perigo. As coisas ruins quase sempre acontecem devido a desobediências ou afastamentos. A maioria dos personagens são crianças ou adolescentes. 

http://en.wikipedia.org/wiki/Little_Red_Riding_Hood

Chapeuzinho Vermelho é a menina que, movida pela curiosidade, embarca na aventura de ir justamente pelo caminho proibido pela mãe.  Nesse caminho perigoso onde ela não deveria por os pés, conversa com um estranho, o apelidado de "Lobo". O Lobo, o ser que perambula por lugares considerado proibidos, prepara armadilhas para criancinhas, indicando caminhos errados para no fim comê-las, invés de comê-las de vez. E por último, principalmente em compilações da Revolução Industrial, aparece o caçador - a figura masculina heróica, a esperança no final da história. 
Tantos simbolismos nos fazem pensar que esses contos, que até hoje impactam as crianças com necessidades e culturas totalmente diferentes,vão muito além dos objetivos de doutrinar.
https://www.pinterest.com/allieoop7660/little-red-riding-hood/

Chapeuzinho vermelho é um conto que suscita a reflexão sobre a questão da infância, o período mais importante da construção humana. Se hoje temos lugares de escuta e de discussão das questões do desenvolvimento infantil, as compilações de Perrault e de Grimm foram escritas em um período e que era muito difícil   discutir diretamente questões tão importantes da infância como  a angústia do abandono ou da decisão solitária, a sedução, os perigos e os temores do crescimento, porém já com o afã de moralizar as crianças e inculcar nelas bons modos e condutas prudentes. 



O manto vermelho da Chapeuzinho é tão importante que ninguém sabe o nome da personagem principal, que é identificada pelo uso desse manto. Nada acontece com essa peça de roupa, não é um elemento mágico como ocorre em muitos contos maravilhosos.  Por que tamanha importância, então? Por que tanta ênfase em sua cor? Seria uma forma de representar a transição de uma moça, o símbolo da transformação em mulher? Essa é uma das interpretações bastante citadas. 
https://www.pinterest.com/cobwebmoth/red-riding-hood-illustrated/

Como uma jovem moça,  Chapeuzinho é vista como alguém que corre perigo ao perambular sozinha, então sua mãe diz "não vá pela floresta". A floresta está sempre cheia de perigos nos contos e não só os lobos, mas também os ogros e as bruxas  costumam morar lá. A floresta é perigo mas é também o que tenta a curiosidade, o que chama à aventura, à experiência sensorial (Chapeuzinho vê borboletas e flores maravilhosas ao longo do caminho e se perde em sua contemplação). Mesmo sabendo do perigo, Chapeuzinho vai por lá, e não satisfeita, conversa com o primeiro estranho que encontra. O desconhecido assume a figura de um lobo.


Ilustração clássica de Gustave Doré para a edição de Charles Perrault Fonte:http://en.wikipedia.org/wiki/Little_Red_Riding_Hoo
Reparem que, ao chegar na casa, Chapeuzinho Vermelho estranha a avó, mas seus direcionamentos não são aleatórios. Primeiro, tem que ficar nua para entrar debaixo dos lençóis. O ato de jogar as roupas no fogo,  na chama, remete à metáfora da chama da paixão e o diálogo que se segue, aos rituais da sedução.






http://en.wikipedia.org/wiki/Little_Red_Riding_Hood
E o caçador, que aparece nas versões mais recentes?  Vejam que ele foi colocado de uma forma um pouco brusca no conto e salva chapeuzinho da barriga do lobo em vez de salvá-la antes que o lobo a devorasse. Essa compilação dos irmãos Grimm, também a mais famosa, surgiu na época da Revolução Industrial que teve seu início na Inglaterra, e mais tarde, na Alemanha. Na Revolução Industrial foi necessário que as mulheres passassem a trabalhar e a mão de obra feminina era mais barata, muitas vezes fazendo o homem assumir papéis na família que não tinha antes, como ajudar a educar as crianças. Nesse sentido, muitos interpretam a figura do caçador na versão dos Irmáos Grimm como  a figura masculina do pai. Freud descreveu que a função do pai na relação entre mãe e filho é de separação, é uma pessoa que separa o filho da mãe, ou seja, faz com que a criança compreenda que ela e a mãe não são uma só pessoa, mas duas. O pai é o ser que traz essa realidade à tona, sendo materializado (concreto) ou não (ideia de pai). O caçador corta a barriga do lobo para tirar o que ele pôs para dentro, o que, por vezes, é interpretado como esse corte que o pai (ou seu representante simbólico) deve fazer para que o filho possa crescer. 

Hoje, com outras visões de família, um sistema político-econômico e social bastante diferente e, para muitas criancás, um ambiente urbano que nada tem a ver com os bosques dos contos, ainda assim as crianças se identificam com os contos, em grande parte devido aos seus conteúdos simbólicos. Não importa a época, os contos nos tocam por tratarem da infância como passou a ser conceituada na modernidade ocidental, ou seja, uma época de fragilidade, crescimento, aprendizado e muitos conflitos. 


Para quem gosta de contar história para crianças, gostaria de lançar uma desafio. Conte este conto, Chapeuzinho Vermelho (podendo ser uma das versões mais adaptadas para as crianças) e converse com ela sobre a história. Se puder,  colabore com seus comentários e experiências!

Referências:
Bettelheim, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Campello, E. T. (2003). As múltiplas vidas de" Chapeuzinho Vermelho". Revista Estudos Feministas11(2), 661-663.
Corso, D. L., & Corso, M. (2007). Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Artmed.
Grimm, J., & GRIMM, W. (2012). Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos.São Paulo: Cosac Naify.
Perrault, C. (2012). Contos de Mamãe Gansa. L&PM.
Tatar, M. (2004). Contos de fadas. Zahar.


Autora: Amanda Barros.
Revisoras: Eileen Flores e Júlia Gisler

Nenhum comentário: