Diário do contador: Gabriel
Temas complicados...
Eu já tinha refletido sobre a situação que teria que
enfrentar e tinha chegado a apenas um ponto: estava decidido que queria porque
queria ler o tal livro do Sherlock Holmes mesmo com as dificuldades presentes.
Na reunião falamos de várias coisas e então
falei das minhas, primeiro que havia descoberto que Sherlock Holmes
usava drogas em seu livro, como podia ele que eu sempre admirei (mesmo sem ter
lido sequer um livro dele) usar drogas? Ele que
tem uma mente com um raciocínio tão extraordinário perdia toda a minha
admiração, além disso, como eu poderia contar aquilo para as crianças? A
pergunta estava lançada: seria melhor trocar de livro? Na verdade eu poderia
resolver aquela situação muito facilmente, bastava pular a página, e todas as
outras que no futuro eu encontrasse falando coisas que eu não queira mediar,
mas isso inibiria tanto o desenvolvimento das crianças quanto o meu, pois
estaria perdendo a oportunidade de tratar de um assunto difícil com elas, ao
invés de desenvolver a capacidade de lidar com temas complicados.
Bem, ninguém se desesperou, na verdade
situações assim são comuns, falar sobre as drogas, da morte, da violência, da
origem da vida ou das coisas, o que seja, é sempre difícil e não há um “passo-a-passo”
que resolva tudo. É preciso ter disposição. Felizmente as mentes com as quais
trabalhamos não foram contaminadas por respostas clichês, acho que por isso temos
receios sobre como respondê-las, quando você responde elas acreditam no que ouvem
e por dar atenção as suas perguntas você ganha um prêmio, o interesse real
delas e uma porção de outras perguntas. Bom, bastaria dizer que aquilo é
errado? Um personagem que iria nos acompanhar durante todo o ano e logo no
começo já demonstrava isso, o que mais estaria por vir, melhor trocar de livro?
Uma resposta, lembro bem, “ora, pergunte a elas
também”. Caso as perguntas me colocassem numa situação desconfortável poderia
ser sincero e dizer que não sei como responder aquilo e perguntar para elas
mesmas o que elas achavam daquilo. Sim, porque subjulgá-las nessa situação de
meras ouvintes passivas sem direito a voz só por ser um tema mais difícil quando
tudo o que fazemos é incentivar a participação delas. Nesses momentos críticos
é que é essencial manter a coerência com aquilo que se está construindo.
Outra coisa me ajudou bastante já fora da
reunião foi pensar no seguinte: se algo se demonstra ruim eu deveria buscar primeiro demonstrar justamente o contrário, buscar até o fim para só depois que aquela
impressão ruim se concretize ou não, abandonar ou não aquilo. Daí que eu nem
tinha lido direito, vendo apenas a palavra narcótico e o estranho efeito que
causava em Holmes, nem quis saber e já
fechei o livro. Voltei a ler, e, sim, tive uma surpresa. O que estava sendo
contada era a impressão que Watson tinha de Holmes, ele disse que parecia que o
Sherlock estava sob o efeito de narcóticos mas que dado o caráter dele ele
excluia essa possibilidade. Ufa, agora sim! Pelo menos o personagem estava
livre dessa, mas o que poderia vir da discussão sobre o tema eu ainda não
sabia. Queria saber!
No dia da contação os grupos são de 5 ou 6
crianças no máximo e fico trinta minutos com cada grupo, num total de 2 horas
eu consigo chamar a classe toda. Tinha muito mais estória além daquele trecho,
quando apareceu essa palavra estranha “narcóticos” alguns perguntaram o que
era, eu disse que era o mesmo que drogas. Expliquei que no caso o Sherlock
Holmes estava se comportando de modo estranho e que o Watson fez essa
associação mas prosseguiu logo dizendo que desconsiderou isso pois conhecia a
reputação do caráter de Sherlock Holmes. Daí uma coisa importante, não julgar
pelas aparências, quando falei em drogas uns poucos brincaram, outros poucos
falaram que já viram pessoas usando. Perguntei então se cigarro não era uma droga,
disseram que sim, e alguns acrescentaram o álcool também, concluí então que
todos já vimos pessoas usando, não devíamos nos assustar com isso, perguntei
sobre o cigarro, o que achavam: credo! Para minha alegria todos odeiam aquele
cheiro, um disse que o fumante da casa fuma apenas fora de casa, falei que isso
é um sinal de respeito e de amor pela família, todos concordaram que não se
deve fumar dentro de casa e incomodar os outros. A mediação desse trecho foi
por aí. Depois disso continuei contando
o resto pois ainda falta muita coisa.
Um comentário:
Gabriel, achei muito rica sua reflexão e fiquei feliz com o fato de você não ter abandonado a leitura e ter continuado lendo do jeitinho que estava ali. Achei que você mediou muito bem a discussão, foi sincero e atento às colocações deles. Seu relato é muito esclarecedor e uma inspiração para outros mediadores, pois quem já não passou por essa situação de dúvida, do tipo "pulo ou continuo??"
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