sexta-feira, 15 de abril de 2016

Pescar e mediar é só começar


Ontem eu revisitei um dos meus contos favoritos, trata-se de uma história de um povo de uma terra fria e foi apresentado e analisado por Clarissa Pinkola Estés, psicóloga de abordagem análitica junguiana. A cada vez que releio, tenho um sentimento profundo de empatia e carinho pela figura sofrida da Mulher Esqueleto, contudo, dessa vez ao ler o conto, me senti pescador.

Vamos para a história... A Mulher Esqueleto e o Pescador Mediador.

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Um dia, um pescador se dirigiu a uma enseada mais distante para trabalhar. Muitos pescadores da região não frequentavam aquela área, alegando que ela era assombrada, mas o homem que há muito tempo estava isolado do convívio de sua comunidade desconhecia daquelas crenças. O pescador preparou sua isca e jogou-a no mar, deu as costas para a proa e cuidou de desenrolar sua rede.
O anzol foi descendo, descendo e finalmente fisgou algo. O Pescador ficou muito entusiasmado! O dia seria bem proveitoso! Podia imaginar o quão grande, o quão saboroso seria esse peixe, quantas pessoas seriam alimentadas por ele! Um verdadeiro banquete!
Mas não foi um peixe que caiu sobre a proa do seu barco, era um esqueleto! Uma mulher esqueleto.
- AHHHHGGGGGGG !!!- Gritou o homem assustado, tamanho foi seu susto que desequilibrou e caiu, enredando-se em sua linha.
Aquela criatura era horrível, havia crustáceos em suas órbitas vazias, corais em seus dentes, não havia um fio de cabelo em sua cabeça. O Pescador tratou de pegar seus remos e disparar em direção a terra. Mas ela o seguia!
-AHHHHHHGGG!!!!! Tamanho era seu medo que não percebera que tanto ele quanto ela estavam pressos e enrolados na mesma linha!
-AHHHHHHHHGGGG!!! - Urrou o Pescador, apavorado! Mas quanto mais ele fugia, mais próxima a Mulher Esqueleto se aproximava. Chegou a terra tropeçando, atrapalhado, aterrorizado e meteu-se no seu iglu, arrastando-se de quatro. No escuro de seu lar, respirando ofegante, ele acreditou que estava seguro, mas então percebeu que ela estava lá, bem perto dele.
Sua pose era bizarra, joelho sobre a clavícula, braço sob as costelas, o quadril descolocado.
Aos poucos, sua respiração se tornou mais suave, o Pescador tomou coragem e usou uma mecha do próprio cabelo para acender sua pederneira e iluminar sua casa.
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Conforme a noite foi avançando, o coração do pescador foi se tranquilizando. Talvez fosse a luz, talvez tenha sido o fato de que o pescador pôde ver seu reflexo no crânio reluzente daquela criatura, o fato era que suas feições se suavizaram e ela não parecia tão hostil e terrível assim.
O Pescador então se aproximou dela, e cuidadosamente começou a desprendê-la da linha de pesca. Puxava a linha com cautela, falando palavras carinhosas, sussurradas,  como uma mãe fala com seu filho, se pegou cantado e ninando.
- O na na na. - Ele cantava e suas mãos dançavam harmoniosamente, como as mãos de uma tecedeira.
- O na na na. O na na na. - Quando terminou, o Pescador envolveu a Mulher Esqueleto com seu cobertor de pele macia. Quando a luz se extinguiu do aposento, o Pescador deitou ao seu lado e dormiu.
Quando ele acordou, encontrou uma mulher feita, com pele macia, seios fartos, cabelos longos e brilhosos, mãos fortes e macias. Eles estavam novamente unidos, dessa vez de um jeito bom e duradouro, pela linha do afeto e do cuidado.
Eles viveram juntos pelo resto de suas vidas e nunca mais faltou peixes na rede desse pescador.

Na leitura dialógica, nós mediadores somos como esse pescador. Preparamos nossas intervenções esperando fisgar as crianças, suas emoções, crenças e opiniões. Desejamos peixinhos coloridos, peixões encorpados. Esperamos que o vier alimente novas discussões e nutra nossas relações.

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Mas... de tempos em tempos, das águas de nossa contação emergem coisas pavorosas e inesperadas, coisas feias e sombrias, coisas sofridas, tabus. Ás vezes, fisgamos uma dor, um trauma, um mito familiar. Abusos psicológicos, preconceitos, violência familiar. Que susto nos levamos! Que vontade nos dá de correr para longe, nos esquivar nos esconder, mas já é tarde, estamos enredados na mesma linha.

Como mediadores, temos que respirar fundo, e olhar o esqueleto com ternura. Como o pescador que doa seu cabelo para trazer luz, doamos de nossa energia para acolher o que estava escondido. Puxamos cuidadosamente a linha das narrativas, a linha das histórias de nossas crianças. Reorganizamos, recriamos, desembaraçamos e arranjamos um lugar seguro para aquele esqueleto se mostrar. Acionamos a rede de apoio da criança, conversando com professores e coordenadores, protegendo-a. Deitamos ao seu lado, expondo também nossa vulnerabilidade "o mundo pode ser duro, mas não estamos sós", "há coisas que não entendemos ainda, mas juntos podemos tentar amenizar a dor"',  o na na na, o na na na. 

Alguns esqueletos voltam para o mar quando nossa contação acaba, outros se tornam companheiros e transforma nossa relação com as crianças, com afeto e cuidado, nos unimos de maneira boa e duradoura.

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Escrito por: Júlia Gisler

Ficha técnica:
Mulheres que correm com lobos
Autora: Clarissa Pinkola Estés
Editora: Rocco
Ano de publicação: 1992

Um comentário:

Unknown disse...

Que lindo, Júlia.