Há
quem argumente que ler contos de fadas e mitos para crianças é perda de tempo,
sem propósito e até mesmo perigoso. “Qual é a vantagem de falar sobre dragões e
fadas madrinhas? Nada disso existe de verdade! Você só ilude a criança assim”,
diriam alguns.
E
eu replico: “Você não acredita em dragões?”, e para mim fica claro que o medo que
os adultos têm da imaginação, da fantasia e da criatividade são prova viva de
seu pânico por dragões.
O
dragão é representado na literatura de duas formas, em dois polos acentuados:
ou ele representa o poder da sabedoria, sendo assim é a criatura imortal, sábia
e misteriosa que conduzirá o herói em sua jornada, ou ele é a mais cruel e
temível das bestas, que destrói a vida e mostra seus dentes vorazes para quem
ousar se aproximar. Independentemente do polo em que eles se encontram, os
dragões sempre são implacáveis e capazes de grandes feitos.
Isto
não nos é familiar em nosso cotidiano? Não lembra as pequenas partes de nós com
que não sabemos lidar? Não é muito semelhante às ideias circulares torturantes
que nós invadem de madrugada antes de uma grande apresentação? E àquelas
emoções que cegam nosso discernimento e atropelam nossas amizades?
E
aquelas características nossas que parecem ser de outro mundo e ter vontade
própria? Como nossa preguiça, nossa desatenção, nossa timidez, nossa teimosia,
nossa impulsividade... Parece que nossos dragões do cotidiano nos congelam,
pioram nossos problemas, destroem nossos planos e machucam nossos amigos.
As
crianças são mais honestas com seus dragões. Ao contrário dos adultos, que,
quando presenciam um bater de asas reptilianas de seu educando ou filho, logo
dão um jeito de repreendê-lo e ordenam que a criança crie uma prisão para
conter o monstrinho. Para os adultos, parece que a única solução é encarcerar
aquela parte de si mesmo, para que ela fique longe dos olhares alheios, sem
saber que, quanto mais punição e repressão um dragão recebe, mais feroz ele
fica.
Por
que não ensinamos as crianças a reconhecerem seus dragões? Por que não as
iniciamos na jornada de autoconhecimento e autocuidado? Por que não procuramos
junto com elas estratégias para que o dragão fera se torne o dragão sábio? Por
que a impulsividade não pode se tornar pró-atividade? Por que a teimosia não
pode ser tenacidade?
Por
causa de uma razão: pânico de dragões (e, talvez, nossa falta de habilidade
para lidar com nossos próprios dragões).
Mas
as crianças são mais honestas, e tentam conviver a trancos e barrancos com seus
dragões. E já que os adultos não as ajudam como prometido, onde encontrar
os heróis e guerreiras para ajudá-las, senão nas
histórias?
Quem
me ajudou nessa jornada foi Soluço Spantosicus Strondus III, filho de Stoico, O
Imenso, cujo nome faz tremer. Ele me ensinou a ser heroína da maneira mais
difícil, guerreira do cotidiano. Aqui seguem algumas dicas:
Um
exemplo talvez ajude: imagine o Dragão Terrividous Timididus. A criança sente
sua presença congelante quando alguém lhe pede para falar algo na frente de muitas
pessoas (temos aqui seu habitat), sente que o dragão se fortalece quando ela
pensa que todos vão rir dela se ela errar a resposta (voilá! Seu prato
favorito!). Essas informações dão a oportunidade para a criança experimentar: e
se ela tentasse pensar outra coisa, o dragão continuaria muito forte? Uma
alimentação mais saudável talvez torne o dragão mais dócil. Em que situações
ela consegue falar com muitas pessoas e não se sentir nervosa? A migração de
território pode modificar o comportamento do dragão também.
A
maior contribuição do Soluço está no item dois: conquiste seu dragão,
integre-se a ele, aceite-o como parte de si e se responsabilize por suas ações.
Não o abandone, mas reconheça-o, treine-o, ensine-lhe, pois só assim seremos
capazes de voar alto e conquistar os desafios que nos propomos.
Encerro
este texto com a esperança de que todos que têm que encarar todos os dias seus
dragões – vampiros, trolls, bruxos
das trevas, lobisomens... – sejam tocados por um conto, e recorram ao seu
guerreiro interior para levantar a espada da coragem e da vontade para
domá-los.
Texto
de Júlia Gisler
Notas:
1. Para
saber mais sobre as memórias de Soluço Strondus III, resgatadas por Cressida
Cowell, acesse o site oficial da série:
2. Informações completas sobre cada um dos livros
da série, incluindo autora e ilustradora, tradutoras, editora e ano de edição do
original e da tradução, clique aqui.
Um comentário:
Ótimo texto Júlia, realmente inspirador.
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