sábado, 19 de julho de 2014

Nossos dragões cotidianos


Há quem argumente que ler contos de fadas e mitos para crianças é perda de tempo, sem propósito e até mesmo perigoso. “Qual é a vantagem de falar sobre dragões e fadas madrinhas? Nada disso existe de verdade! Você só ilude a criança assim”, diriam alguns.
E eu replico: “Você não acredita em dragões?”, e para mim fica claro que o medo que os adultos têm da imaginação, da fantasia e da criatividade são prova viva de seu pânico por dragões.
O dragão é representado na literatura de duas formas, em dois polos acentuados: ou ele representa o poder da sabedoria, sendo assim é a criatura imortal, sábia e misteriosa que conduzirá o herói em sua jornada, ou ele é a mais cruel e temível das bestas, que destrói a vida e mostra seus dentes vorazes para quem ousar se aproximar. Independentemente do polo em que eles se encontram, os dragões sempre são implacáveis e capazes de grandes feitos.
Isto não nos é familiar em nosso cotidiano? Não lembra as pequenas partes de nós com que não sabemos lidar? Não é muito semelhante às ideias circulares torturantes que nós invadem de madrugada antes de uma grande apresentação? E àquelas emoções que cegam nosso discernimento e atropelam nossas amizades?
E aquelas características nossas que parecem ser de outro mundo e ter vontade própria? Como nossa preguiça, nossa desatenção, nossa timidez, nossa teimosia, nossa impulsividade... Parece que nossos dragões do cotidiano nos congelam, pioram nossos problemas, destroem nossos planos e machucam nossos amigos.
As crianças são mais honestas com seus dragões. Ao contrário dos adultos, que, quando presenciam um bater de asas reptilianas de seu educando ou filho, logo dão um jeito de repreendê-lo e ordenam que a criança crie uma prisão para conter o monstrinho. Para os adultos, parece que a única solução é encarcerar aquela parte de si mesmo, para que ela fique longe dos olhares alheios, sem saber que, quanto mais punição e repressão um dragão recebe, mais feroz ele fica.
Por que não ensinamos as crianças a reconhecerem seus dragões? Por que não as iniciamos na jornada de autoconhecimento e autocuidado? Por que não procuramos junto com elas estratégias para que o dragão fera se torne o dragão sábio? Por que a impulsividade não pode se tornar pró-atividade? Por que a teimosia não pode ser tenacidade?
Por causa de uma razão: pânico de dragões (e, talvez, nossa falta de habilidade para lidar com nossos próprios dragões).
Mas as crianças são mais honestas, e tentam conviver a trancos e barrancos com seus dragões. E já que os adultos não as ajudam como prometido, onde encontrar os heróis e guerreiras para ajudá-las, senão nas histórias?
Quem me ajudou nessa jornada foi Soluço Spantosicus Strondus III, filho de Stoico, O Imenso, cujo nome faz tremer. Ele me ensinou a ser heroína da maneira mais difícil, guerreira do cotidiano. Aqui seguem algumas dicas:

Um exemplo talvez ajude: imagine o Dragão Terrividous Timididus. A criança sente sua presença congelante quando alguém lhe pede para falar algo na frente de muitas pessoas (temos aqui seu habitat), sente que o dragão se fortalece quando ela pensa que todos vão rir dela se ela errar a resposta (voilá! Seu prato favorito!). Essas informações dão a oportunidade para a criança experimentar: e se ela tentasse pensar outra coisa, o dragão continuaria muito forte? Uma alimentação mais saudável talvez torne o dragão mais dócil. Em que situações ela consegue falar com muitas pessoas e não se sentir nervosa? A migração de território pode modificar o comportamento do dragão também.
A maior contribuição do Soluço está no item dois: conquiste seu dragão, integre-se a ele, aceite-o como parte de si e se responsabilize por suas ações. Não o abandone, mas reconheça-o, treine-o, ensine-lhe, pois só assim seremos capazes de voar alto e conquistar os desafios que nos propomos.
Encerro este texto com a esperança de que todos que têm que encarar todos os dias seus dragões – vampiros, trolls, bruxos das trevas, lobisomens... – sejam tocados por um conto, e recorram ao seu guerreiro interior para levantar a espada da coragem e da vontade para domá-los.

Texto de Júlia Gisler

Notas:
1.      Para saber mais sobre as memórias de Soluço Strondus III, resgatadas por Cressida Cowell, acesse o site oficial da série
2.       Informações completas sobre cada um dos livros da série, incluindo autora e ilustradora, tradutoras, editora e ano de edição do original e da tradução, clique aqui.



Um comentário:

Sara Meneses disse...

Ótimo texto Júlia, realmente inspirador.