segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A eternidade da infância

A Gata, ou como perdi a eternidade.


Quando você era criança, você tinha a eternidade. As falhas da calçada eram um mundo de desenhos, formigas, musgos de tons e texturas surpreendentes. As coisas não estavam classificadas como hoje e a poesia ainda era parte integrante de seu fluxo de pensamento, mesmo que você não soubesse o que era poesia. Cheiros tinham cores, cores tinham sons, sons tinham textura e corte. Ao mesmo tempo, as palavras nos traziam mistérios metafísicos com os quais nos víamos às voltas: o infinito (como pode algo nunca acabar?) o nascimento (como é que eu não estava aqui e agora estou?), a identidade (por que sou eu e não outra pessoa?) o significado da palavra (repetir uma palavra até ela ficar sem sentido, quem nunca brincou disso?)
É difícil colocar em palavras o sincretismo da mente infantil e a angústia existencial que faz parte de nossas primeiras experiências com a linguagem. Muitos autores, por amnésia ou idealização, elaboram uma visão de infância livre de Angst, embora possa conter tristezas e alegrias muito concretas. Mas Jutta Richter, autora alemã ganhadora de mais de dez prêmios de literatura infanto-juvenil, não se esqueceu do estranhamento fundamental com que a criança olha o mundo. Ao ler a narrativa de Christine, vemos uma menina em um mundo nada cor-de-rosa, com adultos que compreendem mal a infância e se irritam por ela ser... criança. Seus diálogos com a gata branca que encontra todos os dias a caminho da escola revelam como Jutta, aos poucos, passa a compreender melhor certos segredos do funcionamento dos adultos, se "adaptando" melhor e, com isso, perdendo a infância. 

O texto é muito bem traduzido por Daniel R. Bonomo, pesquisador de língua e literatura alemã da Universidade de São Paulo, que capta a cadência do fluxo de pensamento infantil. A ilustradora Rotraut Berner* nos brinda com ilustrações tão poéticas quanto o texto, com detalhes bem-humorados e nada óbvios.





 Ler esta obra é sermos lembrados de como nós, também, um dia, perdemos a eternidade.

A gata, ou como perdi a eternidade
Autora: Jutta Richter
Ilustradora: Rotraut Susanne Berner
Tradutor: Daniel R. Bonomo**
Editora: 34
Tema: Universo infantil

* (que também fez as divertidas ilustrações da obra O Diabo dos Números, bem conhecida no Brasil)
** Traduziu também do alemão o livro Iris, uma Despedida, obra primorosa da qual falaremos em breve.


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