sábado, 10 de outubro de 2015

Livros infantis e empoderamento: reflexões sobre a escolha das obras.

Com a diversidade como pauta de discussões em escolas, é natural que professores recorram à literatura infantil para iniciar ou complementar debates acerca do assunto. Todavia, selecionar a obra e analisá-la antes da leitura compartilhada é muito importante. Não digo que crianças necessitam de um mediador para ditar o que ela deve ler ou não, mas, para o mediador que vai compartilhar uma obra com as crianças, é fundamental ler o livro antes e pensar sobre ele, seja individualmente, seja em rodas de discussões.
Existem livros infantis que são usados por adultos para tentar passar uma mensagem  e acabam passando outras, que até contradizem a suposta "quebra de paradigmas" que o adulto quer discutir com as crianças. Quantos mediadores já não procuraram obras partindo de temas específicos que queriam trabalhar, viram que eram acessíveis, mas, ao ler a obra, que decepção... Que atire a primeira pedra quem nunca fez isso...Claro que a própria instrumentalização da obra infantil e sua escolha pelo "tema"  é bastante questionável, mas isso fica para uma próxima postagem.Por enquanto, quero discutir o que já acontece: certas obras são recomendadas como instrumentos para quebrar preconceitos e dar voz a grupos discriminados, mas a escolha nem sempre é criteriosa.
Minha intenção nessa resenha é apenas dar a minha opinião sobre duas obras famosas sempre citadas para abordar a diversidade, mas de que eu não gosto tanto, porque acho que têm muitas falhas para cumprir esse objetivo. Para quem utiliza os livros em parte com esse tipo se propósito, é importante que possa questionar se a obra é a melhor escolha e se ela ajuda de fato a flexibilizar os pontos de vista das crianças e a quebrar preconceitos.

Menina bonita do laço de fita

Um clássico de Ana Maria Machado. Quase sempre que procuro livros sobre etnia, essa obra está na lista. 


Resumindo o livro: O protagonista é um coelho branco que observa uma menina negra e passa o livro inteiro perguntando pra ela como ela faz pra ser preta, ovacionando o quanto ela é bonita por este fato.

Se vamos debater sobre protagonismo e usar este livro específico para criar empoderamento, para mim, o negro vir em segundo plano já é um problema. O protagonista não é a menina, que aliás, nem tem nome. Ela, na história, é a menina de pele escura, não tem voz, ela só fala quando o coelho branco "dá permissão" por meio de suas perguntas.

O papel da menina negra é apenas ser o objeto de admiração do coelho, sendo até sensualizada em uma imagem:



Na história não acontece nada, é apenas diálogo pronto de "menina, o que faz pra ser pretinha?" e a menina fala qualquer coisa ligada à cor preta. Aliás, vale um "close" no ""blackface" do coelho...



Quando a menina diz que talvez sua pele seja preta porque comia muita jabuticaba, o narrador conta que o coelho não ficou preto, mas o seu cocô, sim. Uma conexão totalmente desnecessária e que obviamente não faz nada para recomendar o livro em termos de empoderamento e autoestima...




A obra reproduz uma abordagem forçada e preconceituosa de etnia,  insinuando que ser negro é ser exótico e, para ser legal, tem que ter um branco afirmando que é (me poupem de dizer que, por ser um coelho, está tudo ok). Esse aspecto se concretiza com o uso do termo "mulata" para designar a mãe da menina pretinha (se isso não era considerado inadequadonos anos 70, quando o livro foi escrito, isso justifica usá-lo hoje como escolha para empoderar crianças negras?) Aliás, a mãe não fala em primeira pessoa, mas é narrada: para ser preto tem que ter preto na família. O coelho então casa com uma coelha preta pra ter filhos de "todas as cores". Conclusão: ser negro é algo exótico, o papel da negra é ser objeto de sensualidade e uma incubadora. A hiper-sexualização da mulher negra e a exotização do negro para torna-lo "positivo" são problemas que o movimento afro tenta combater. Como uma obra que naturaliza esses preconceitos pode ser usada para debater o racismo? Eu, particularmente, por todas essas razões e outras mais, detesto esse livro. Não sei se as pessoas que o indicam em blogs afros já o leram, sinceramente.

Lado bom: é um dos pouquíssimos livros, na época em que foi publicado e, infelizmente, até hoje,  em que uma das personagens principais é uma menina negra, e apesar de exaltar a sua beleza através da voz de um (coelho) branco, sua beleza é o destaque. Já que representatividade é fundamental, e ela se encontra bastante escassa nesse contexto, a obra tem sua importância, sobretudo uma importância histórica. Precisamos pensar em opções contemporâneas mais afinadas com um compromisso com a representatividade genuína das crianças negras na literatura.


Até as princesas soltam pum

Ao contrário do livro acima, esta obra,de Ilan Brenman, eu não detesto, mas também acho que aqueles que recomendam a obra para empoderar meninas deram, no mínimo, pouca atenção ao conteúdo do livro, pois a história acaba reforçando estereótipos, embora pareça inicialmente subvertê-los. Conhecendo um pouco sobre o autor e sua visão de literatura infantil, suponho que, talvez, ele não se identifique com compromisso algum de empoderar meninas nem de levar a uma reflexão feminista, mas apenas de entreter, brincar e fazer rir, sem pretensão de crítica a valores vigentes. No entanto, o fato de o autor não concordar que a literatura infantil deva servir a propósitos externos nem ser julgada por critérios como esses não impede que o livro seja amplamente vendido como interessante para quebrar paradigmas. Prova disso é a recomendação da obra em listas do tipo "livros que toda menina deve ler". O livro constuma ser citado como especialmente bom para quebrar idéias fixas sobre como meninas devem se comportar... (nesse caso,aliás, me pergunto por que essas listas não recomendam presentear o livro a meninos também!!). Considerando tudo isso, farei minhas considerações acerca do potencial desta obra para realmente ajudar a quebrar paradigmas. 

Resumo: uma menina chega em casa aflita perguntando ao pai se era possível uma princesa soltar pum. E ele, em sua sabedoria, mostra a ela um livro secreto das princesas que ele guardava mostrando que sim, mas tudo com extrema cautela.

O problema que o livro aborda, com muito humor mas pouca subversão, é o lugar da escatologia no "universo feminino". Desde crianças, meninas são ensinadas que verdadeiras damas precisam esconder ao máximo o fato de terem necessidades fisiológicas, e, quanto mais livres disso, mais perfeitas. A princesa é o símbolo de perfeição, logo, como ela iria soltar pum? Por meio do humor, essa questão é discutida a partir de diversos ângulos. No entanto, eu esperava que, de forma leve, o livro contribuísse para dar um basta nessa ideia de que ladies não fazem cocô e devem ter vergonha disso e guardar segredo. Mas não. Quando chegamos ao "livro secreto das princesas" vemos que elas soltavam pum sim, mas eram tão "sortudas" que os momentos em que cometeram esse pecado não foram registrados ou descobertos por seus príncipes, com entusiasmos da menina protagonista de "essa foi por pouco!!!" ao ouvir seu sábio pai confessando as heresias das ladies impostoras. E no fim, ainda reforçam com "Princesas soltam pum, sim, mas mantenham o segredo".

Nem precisaria citar que o fato de ser um homem a guiar o conhecimento da menina acerca do "universo feminino" me irritou. Mas o que mais me irritou, na verdade, foi a decepção. Me animei, por ser comédia, mas chorei, por ver que a história reforça novamente que a mulher, sempre muito mais que o homem, precisa se envergonhar de suas funções corporais. Todas as princesas soltam pum, mas ó: segredo!


Autoria: Amanda Barros


BRENMAN, ILAN. Até as princesas soltam pum. Editora Brinque Book, 2008.

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