Recentemente, aqui no
blog, o nosso amigo João Bosco trouxe uma reflexão que quero usar como base
para a experiência que vou compartilhar com vocês. Experiência que será, sem
sombra de dúvidas, o divisor de águas para o momento em que eu percebi não ser apenas
parte do projeto, mas sim a expressão dele na vida dos meninos e meninas que
todas as terças-feiras passam, em média, trinta minutos dialogando e vivendo as
histórias que contamos juntos. Bom, em seu texto publicado no dia 26 de maio, no
último parágrafo, João diz a seguinte frase: “nós contamos histórias que são
conectadas com vidas, vidas de pessoas que a gente pode conhecer ou não. Que
são sempre reais porque a gente não sabe se a história do livro pode ser a
história de alguém, mesmo que cercada de fantasia.”.
Bom,
eu estou concluindo a minha graduação em Serviço Social e sempre quis levar
algo do que eu estudo para as nossas contações, mas antes de fazer isso eu
tentei primeiro fortalecer um vínculo de confiança com eles e conhecê-los um
pouco melhor. Assim seria mais fácil pensar sobre o que poderia ser tratado em
um primeiro momento, para que a mensagem passasse de forma leve e determinante,
sem criar nenhum choque nas gigantescas mentes desses pequeninos. Pois bem, no
período de observação percebi que falar sobre “raça” com eles com certeza seria
algo interessante, visto que por algumas vezes eles comentaram de maneira
aleatória sobre o caso do goleiro Aranha, que quando ainda jogava pelo time do
Santos, foi vítima de racismo por parte da torcida gremista em uma partida de
futebol.
Inspirada
por uma apresentação da Amanda Barros sobre
personagens negros na literatura brasileira, levei o livro do Caio
Riter, o Pedro Noite, da editora Biruta. Eu separei uma peruca, algumas faixas
coloridas, óculos, papéis com desenhos feitos a mão por mim para que eles
fizessem observações e muita disposição e alegria para mais um dia de encontro.
Eles chegaram embalados pelo ânimo e o alvoroço, é impressionante como o
momento de compartilharmos com eles uma história é realmente apreciado. Sentamos
na biblioteca e eu fiz a apresentação do livro, perguntei a eles se havia algum
palpite sobre o que seria a história. Eufóricos, eles foram logo falando sobre
racismo e bullying e começamos a dialogar sobre isso. Escutei as opiniões e as
respostas firmes, como: “todos somos iguais” “ninguém é melhor ou pior por
conta da cor”, “racismo é algo muito feio”, “eu detesto o racismo”, como
sabemos, a criança não nasce racista ou com qualquer outro preconceito, em
alguns casos isso acaba acontecendo por outras influências, mas que não irei
abordar aqui. Enfim, ouvi-los é realmente satisfatório e ouvir coisas boas das
crianças faz com que a chama de esperança de dias melhores realmente reacenda
em nossos corações.
Mas o
que especialmente mexeu comigo neste dia foi que em dois momentos diferentes da
história, meninos diferentes, choraram. E choraram mesmo. No primeiro momento eu
não sabia o que fazer, porém ao perceber que as outras crianças estavam
percebendo o que estava acontecendo eu resolvi perguntar se estava tudo bem e
se eu deveria continuar com a história, com a resposta afirmativa eu prossegui
e esperei uma “deixa” na situação para saber como ele se sentia sobre o que
estávamos conversando. Ele logo tomou a voz e disse que se sentia como Pedro,
que não era por conta da sua cor, mas de outras características físicas que ele
possuía. Comecei uma brincadeira que era basicamente falarmos uns para os
outros como víamos o colega ao lado, com brincadeiras, mas sem agressões -
afinal, durante toda a leitura falamos sobre respeitar os nossos amigos e
aceitarmos as pessoas como elas são - falamos da aparência interna e externa
uns dos outros. Confesso que fiquei temerosa, até porque a capacidade da
sinceridade infantil, por vezes, não tem limites. Mas eles foram gentis uns com
os outros, riam do que falavam, mas falaram com muito respeito e amizade,
algumas vezes com esforço para não magoar, contudo, ainda assim agiram de
maneira muito simples. No final, já estava na ponta da língua toda a mensagem
da nossa manhã. O nosso amiguinho que estava emocionado já estava gargalhando e
se divertindo muito. Com pesar, terminamos o primeiro tempo e eles foram para a
sala falando sobre o Pedro Noite.
O
segundo grupo chegou com mais ânimo do que o anterior e em um número um pouco
maior. Fizemos a introdução ao livro, como sempre fazemos, e juntos desbravamos
as intempéries de uma vida marcada pelo preconceito e a intolerância. Daí, para
a minha surpresa, um dos meninos do segundo grupo, também se emociona com o
tema. Resolvi utilizar a mesma abordagem anterior, tentando explorar ao máximo
a aceitação e o afeto entre eles. O melhor disso é que sempre somos
surpreendidos com a imaginação infantil e o quanto os estímulos podem nos
trazer respostas primorosas. Enfim, por conta das particularidades dessas duas
contações, não tive tempo de trabalhar com um terceiro grupo, entretanto, essa
experiência me motivou para explorar o mesmo tema com as outras crianças na
próxima semana, ou talvez algo que se aproxime disso, mas ainda estou
preparando.
Outro
detalhe desse dia, como citei acima, é que levei alguns utensílios pessoais e
coloridos para a contação. Todos eles quiseram usar alguma das coisas, alguns
meninos usaram a peruca loira, outros colocaram faixas na cabeça, as meninas brincaram
com os óculos, em suma, todos ficaram extremamente confortáveis e em nenhum
momento eu escutei algo que fosse, ao menos, semelhante a frases como: “isso eu
não uso, é de mulher” ou “isso é coisa de menino”. Eles estavam entre eles,
falando sobre como se sentiam e sobre o que aprovavam e desaprovavam,
inventando finais para a história do Pedro Noite, sorrindo muito e com lenços
na cabeça, em alguns momentos sensibilizados, mas, sobretudo, eles estavam
livres para ser e assumirem quem eles eram e o quem eles viam. E isso foi algo muito
profundo, muito especial. A leitura é a janela da imaginação para uma nova
jornada, mesmo que ela envolva uma trilha que nos leva a nós mesmos.
Escrito por: Deliane Rodrigues
Ilustração: Filipe Alencar
Escrito por: Deliane Rodrigues
Ilustração: Filipe Alencar
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