Em seu
livro País das Neves, Yasunari Kawabata conta sobre a produção do Chijimi,
tecido branco feito nos meses de inverno por jovens moças, alvejado ainda sobre
a neve. Por ser feito no frio, diz-se, é capaz de manter o frescor da pele até
nos dias quentes do verão. Na primavera, o tecido é vendido em feiras, motivo
de grande furor entre os admiradores da arte. No entanto, a tessitura do
Chijimi não é de forma alguma uma atividade rentável, dada a relação entre a
quantidade de trabalho dispendida em cada peça e o seu lucro, que inviabiliza a
contratação de tecelãs de fora da família. No entanto, o Chijimi continua a ser
fabricado. Não seria mais fácil produzi-lo em escala industrial?
Talvez sim.
Mas, entre os fios do Chijimi, escondem-se o vermelho do sol poente, a alvura
da neve, o primor dispensado pelas tecelãs, nada disso reproduzível por
máquinas. Deve estar aí a razão de todo a agitação primaveril em torno do
tecido. Trata-se, fundamentalmente, da preservação de um tipo especial de
memória, que o comprador do Chijimi pode chamar de sua. Existe, aliás, muito em
comum entre os têxteis e os textos, como já disse Ana Maria Machado. Os fios da
narrativa e os fios do linho ora se confundem, ora se misturam deliberadamente.
Só o que se pode afirmar com certeza é que a dissociação completa dos dois
resultaria em um tecido que jamais vestiria adequadamente um poeta.
Imagem retirada de http://www.dw.de/indian-storytellers-struggle-to-keep-tradition-alive/a-16765198 |
Ao lermos
com as crianças, precisamos imprimir na nossa narrativa os aspectos afetivos da
contação de histórias. Não se trata apenas de criar compaixão pelas personagens
ou coisas do tipo. O que digo aqui é sobre a criação do amor pela leitura em
si, que é, afinal de contas, o que quase sempre nos faz abrir um livro
literário. Pois, qual é, afinal, a rentabilidade do texto literário, senão a do
amor? Poderíamos ler dicionários e gramáticas para aprimorarmos nosso
conhecimento da língua – mas, novamente, isso resultaria em um vocabulário
impassível de ser utilizado por uma vovó com seu netinho.
O
personagem Shimamura reflete, em certo momento, sobre o Chijimi:
“Assim, as
mãos anônimas de antigamente, tendo morrido após completar seu diligente
trabalho, restava somente o Chijimi, delícia de alguns conhecedores requintados
como Shimamura, suave frescor sobre a pele nos meses de verão.
“Aparentemente
Insignificante, o pensamento o comoveu, como se cheio de densidade. Onde o
trabalho no qual um coração reverteu todo o seu amor está destinado a despertar
emoção? Onde e quando?”
Das
histórias que nos foram contadas, muitas vezes, resta apenas o amor. E ele se
aviva a cada instante em que abrimos um livro sem pretensões egoístas. O ato de
contar, assim como o de ler, deve estar amarrado a um amor intrínseco à relação
com o livro, e isso é passado adiante pelas tecelãs das narrativas. O Chijimi,
assim como o amor, não é eterno, sendo necessária a sua renovação periódica,
possível apenas através da transmissão do ato de tecer. Transmitamos às
crianças, em nossa posição de mediadores, portanto, o amor pelo livro, e elas
se tornarão depois leitoras e contadoras. Como Adélia Prado foi capaz de captar
brilhantemente, o que fica é o amor:
“Minha mãe
cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava.”
Por Gilberto Gauche
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