sábado, 28 de junho de 2014

O fio do linho, fio da narrativa. Passado o tempo, o que fica?

Em seu livro País das Neves, Yasunari Kawabata conta sobre a produção do Chijimi, tecido branco feito nos meses de inverno por jovens moças, alvejado ainda sobre a neve. Por ser feito no frio, diz-se, é capaz de manter o frescor da pele até nos dias quentes do verão. Na primavera, o tecido é vendido em feiras, motivo de grande furor entre os admiradores da arte. No entanto, a tessitura do Chijimi não é de forma alguma uma atividade rentável, dada a relação entre a quantidade de trabalho dispendida em cada peça e o seu lucro, que inviabiliza a contratação de tecelãs de fora da família. No entanto, o Chijimi continua a ser fabricado. Não seria mais fácil produzi-lo em escala industrial?
Talvez sim. Mas, entre os fios do Chijimi, escondem-se o vermelho do sol poente, a alvura da neve, o primor dispensado pelas tecelãs, nada disso reproduzível por máquinas. Deve estar aí a razão de todo a agitação primaveril em torno do tecido. Trata-se, fundamentalmente, da preservação de um tipo especial de memória, que o comprador do Chijimi pode chamar de sua. Existe, aliás, muito em comum entre os têxteis e os textos, como já disse Ana Maria Machado. Os fios da narrativa e os fios do linho ora se confundem, ora se misturam deliberadamente. Só o que se pode afirmar com certeza é que a dissociação completa dos dois resultaria em um tecido que jamais vestiria adequadamente um poeta.
 Imagem retirada de
http://www.dw.de/indian-storytellers-struggle-to-keep-tradition-alive/a-16765198
Ao lermos com as crianças, precisamos imprimir na nossa narrativa os aspectos afetivos da contação de histórias. Não se trata apenas de criar compaixão pelas personagens ou coisas do tipo. O que digo aqui é sobre a criação do amor pela leitura em si, que é, afinal de contas, o que quase sempre nos faz abrir um livro literário. Pois, qual é, afinal, a rentabilidade do texto literário, senão a do amor? Poderíamos ler dicionários e gramáticas para aprimorarmos nosso conhecimento da língua – mas, novamente, isso resultaria em um vocabulário impassível de ser utilizado por uma vovó com seu netinho.
O personagem Shimamura reflete, em certo momento, sobre o Chijimi:
“Assim, as mãos anônimas de antigamente, tendo morrido após completar seu diligente trabalho, restava somente o Chijimi, delícia de alguns conhecedores requintados como Shimamura, suave frescor sobre a pele nos meses de verão.
“Aparentemente Insignificante, o pensamento o comoveu, como se cheio de densidade. Onde o trabalho no qual um coração reverteu todo o seu amor está destinado a despertar emoção? Onde e quando?”
Das histórias que nos foram contadas, muitas vezes, resta apenas o amor. E ele se aviva a cada instante em que abrimos um livro sem pretensões egoístas. O ato de contar, assim como o de ler, deve estar amarrado a um amor intrínseco à relação com o livro, e isso é passado adiante pelas tecelãs das narrativas. O Chijimi, assim como o amor, não é eterno, sendo necessária a sua renovação periódica, possível apenas através da transmissão do ato de tecer. Transmitamos às crianças, em nossa posição de mediadores, portanto, o amor pelo livro, e elas se tornarão depois leitoras e contadoras. Como Adélia Prado foi capaz de captar brilhantemente, o que fica é o amor:

“Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava.”

Por Gilberto Gauche

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