A primeira vez que a Professora Eileen mostrou este livro na reunião semanal do projeto, o que mais me chamou a atenção foi o título. Não sei explicar, mas o achei extremamente convidativo. Por essa época estava acontecendo em Brasília a II Bienal do Livro, então decidi comprar este livro, não foi nada fácil. Na primeira tenda que fui não o encontrei, nem na segunda, terceira, quarta, enfim, houve uma hora que eu realmente ia desistir. Porém, conversando com uma vendedora acabei mencionando minha procura e ela me informou de uma tenda que só vendia livros infantis. Fui atrás e consegui o ÚNICO exemplar daquela tenda e provavelmente da Bienal, mas valeu a pena. O levei para as crianças e já no primeiro conto o livro as deixou intrigadas, era diferente não fornecia respostas, mas perguntas, tantas perguntas quanto se podia formular. O primeiro conto "Eric", o qual a Professora leu para os mediadores, fez as crianças, viajarem e isso foi incrível surgiram observações que nós nem si quer tínhamos observado na reunião. Naquele mesmo dia me pediram para contar outro conto, "O Búfalo do Rio" . E foi assim com cada conto e cada imagem, era fascinante observá-las devorando-o por completo.
Decidi contar "Chuva ao longe", levei folhas em branco e pedi à elas que após a leitura do conto cada uma se quisesse poderia escrever um poema, assim na próxima contação, cada um recitaria o seu. Como inspiração também levei um poema meu e recitei para eles. Confesso, que adorei esse conto, de uma maneira tão singela, simples, mas extremamente apaixonante Shaun Tan demonstra como cada ser humano é poeta às escondidas.
E Bingo! Os poemas das crianças me surpreenderam, o tema era livre, então algumas escreveram sobre a vida, a amizade, o amor, outras fizeram rima, enfim se divertiram com as palavras. Alguns em especial me tocaram, tamanha sabedoria que continham, outros eram tão leves e bom de ler, que deu vontade de decorar. Essa foi uma experiência muito legal, acredito que com o incentivo certo as crianças podem demonstrar mais esse lado escritora e escritor que elas possuem, quem sabe algum dia elas até publiquem algo...
Para finalizar, o dito conto:
"Chuva ao Longe"- Shaun Tan.
"Você já se perguntou o que acontece com todos os poemas que as pessoas escrevem?
Aqueles poemas que elas não deixam ninguém ler?
Talvez eles sejam pessoais e particulares demais.
Talvez não sejam bons o bastante.
Talvez a mera sensação de que alguém possa ler uma manifestação tão sincera seja vista como :
deselegante, frívola, boba, pretensiosa, melosa, banal, sentimental,
trivial, tediosa, excessiva ,obscura, inútil, estúpida,
ou apenas vergonhosa.
É o suficiente para dar a qualquer aspirante a poeta boa razão para esconder sua obra dos olhos do público. Para sempre. Naturalmente muitos poemas são destruídos imediatamente queimados, rasgados ou
jogados na privada.
Vez por outra eles são dobrados em quadradinhos e enfiados sob o canto de um móvel bambo, outros ficam escondidos atrás de um tijolo solto ou num canto ou lacrados no verso de um despertador ou colocados entre as páginas de um livro obscuro que tem poucas chances de vir a ser aberto.
Algum dia alguém pode encontrá-los, mas provavelmente não.
A verdade é que a poesia não lida quase sempre não passará disto condenada a juntar-se ao rio vasto e invisível de refugo que aflui dos lugares distantes. Bom quase sempre. Em raras ocasiões, alguns escritos particularmente insistentes vão fugir para um quintal ou uma viela soprados pelo vento ao longo de um aterro na beira da estrada e descansar enfim num estacionamento de shopping center.
Assim como tantas outras coisas é aqui que algo extraordinário tem lugar, dois ou mais escritos poéticos vagam até se encontrar devido a uma estranhas força de atração que a ciência desconhece e vagarosamente grudam até formar uma bolinha disforme.
Se deixada em paz, essa bola gradualmente fica maior e mais redonda pois versos livres, confissões, segredos, reflexões, desejos e cartas de amor não enviadas também se prendem uma a uma.
Esta bola arrasta-se pelas ruas como folhas ao vento por meses até anos, se ela sair apenas à noite, tem boas chances de sobreviver ao tráfego e às crianças e com seu lento rolamento evita os caracóis (seus predadores número um). Com certo tamanho, ela se protege por instinto do mau tempo, despercebida caso contrário, vaga pelas ruas, buscando restos perdidos de pensamento e sentimento.
Com tempo + sorte a bola de poesia se torna grande, imensa, enorme:
um vasto acúmulo de pedaços de papel que acaba subindo ao ar, levitando apenas com a força de tanta emoção não dita. E flutua suavemente sobre os telhados dos lugares distantes quando todos estão dormindo inspirando cães solitários a latir no meio da noite.
Infelizmente,
uma grande bola de papel, não importa o quão grande e flutuante, ainda é algo frágil.
Mais cedo ou mais tarde ela será surpreendida por uma rajada de vento, castigada por chuva forte e reduzida, em questão de minutos, a um bilhão de tiras molhadas.
Uma manhã, todos acordarão para ver uma polposa sujeira cobrindo os jardins, entupindo sarjetas e encobrindo para-brisas. O trânsito ficará prejudicado. As crianças, encantadas. Os adultos, perplexos, incapazes de conceber de onde veio tudo aquilo.
Ainda mais estranho será descobrir que cada massa de papel molhado contém diversas palavras desbotadas, prensadas, em versos acidentados.
Quase invisíveis, mas inegavelmente presentes. E para cada leitor vão cochichar uma coisa diferente.
Coisas alegres, coisas tristes,
verdadeiras,
absurdas,
hilárias, profundas e perfeitas.
Ninguém será capaz de explicar a estranha sensação de leveza, nem o sorriso escondido que perdura.
Mesmo que os varredores de rua vem e vão."
Contos de Lugares Distantes
- Autor e ilustrador : Shaun TanTradução: Érico AssisTexto de orelha: Daniel PellizzariQuarta capa: Neil GaimanEditora: Cosac Naify
Sara Meneses.
Um comentário:
Sara, obrigada por compartilhar! Shaun Tan é simplesmente fantástico. Sua experiência mostra, mais uma vez, aquilo que sempre estamos comprovando nas reuniões: criança gosta de coisa boa!
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